Hanyeo (1960) e a obsessão do cinema sul-coreano de horror por empregadas domésticas sedutoras




 




Em 1945, termina finalmente o domínio nipônico na península da Coreia. Depois da separação do território entre o norte e sul, a Coreia do Sul começa a investir pesado no entretenimento. A partir dos anos 50, tem início a chamada década de ouro do cinema do país, a qual durou até 1960. E foi justamente no último ano dessa safra cinematográfica que surge um dos filmes mais controversos da filmografia coreana, Hanyeo, dirigido por Kim Ki-young, o qual é considerado o primeiro longa-metragem de horror da era moderna sul-coreana. O filme aborda a história de uma família de classe média da Coreia do Sul, os Kim. Na produção, os papéis sociais do homem e da mulher estão invertidos. Quem cuida do sustento majoritário do lar é a esposa. Isso causou um impacto muito grande na sociedade sul-coreana conservadora. 

Kim Dong-sik (Kim Jin-kyu) e a senhora Kim (Ju Jeung-ryu) constituem um casal com dois filhos. Enquanto o marido exerce funções em uma fábrica, a esposa, grávida do terceiro filho, distribui-se entre a confecção de vestidos e as tarefas domésticas, encontrando-se exausta devido à mudança da família para uma residência maior. A necessidade de manter a produção de vestidos, altamente remunerada, impede a interrupção de suas atividades laborais. Paralelamente, Dong-sik atua como pianista do coral da empresa, que emprega numerosas funcionárias.

Diante da impossibilidade da esposa em assumir integralmente os cuidados domésticos, o marido contrata uma colega de trabalho para auxiliá-la. Progressivamente, a jovem demonstra comportamentos perturbadores, como capturar ratos com as próprias mãos e observar a família em momentos íntimos. A relação entre Dong-sik e a empregada evolui para um caso extraconjugal, resultando na gravidez da jovem, que permanece na residência mesmo após a gestação. O casal, então, elabora uma trama para induzir a interrupção da gravidez, após a qual a empregada passa a apresentar condutas ainda mais instáveis e inquietantes.

O caso entre a empregada doméstica e o Senhor Kim pode ser definido como um sintoma da insegurança masculina. Inconformado por não conseguir suprir todas as necessidades do lar e ganhando menos do que a esposa, ele desfere toda a sua insatisfação nesse relacionamento extraconjugal. Tanto que essa relação vai escalonando rapidamente para a violência quando, junto com a esposa, o marido infiel arquiteta um plano para se livrar da criança indesejada.



O filme expressa o medo sobre o fim do patriarcado como resultado do advento do capitalismo ocidental, um medo expresso através de ilusão sexual e perseguição. A empregada Myong-ja se torna vítima dos desejos sádicos do professor de música Dong-sik, o pai e chefe da nova família de classe média. Inicialmente, ela é um símbolo de status, mas também significa a mudança da dinâmica de poder da família: a esposa costureira de sucesso é libertada do trabalho doméstico e assume o controle da família, enquanto Dong-sik perde sua autoridade como o chefe de família. Ele então alivia sua frustração através da violência sexual dirigida para a empregada, engravidando-a antes que sua esposa exija que ela aborte o bebê jogando-se escada abaixo. Os desejos do casal simbolicamente transformam a empregada em um monstro; ela se torna uma ameaça perigosa à vida familiar. (Lee, 2013, p.25)*

Quanto a empregada, muitas figuras femininas monstruosas povoam o imaginário do cinema sul-coreano e refletem a cultura patriarcal do país. No caso de Hanyo, essa empregada doméstica sedutora carrega um simbolismo de que as mulheres devem assumir integralmente a manutenção de seu lar, sem depender de terceiros, sob o risco de ter seu casamento ameaçado. Além disso, sua figura incorpora o medo da transgressão feminina: ao mesmo tempo em que seduz, ela encarna a sexualidade reprimida e a ameaça à ordem familiar, funcionando como um alerta sobre as consequências sociais e sobrenaturais da desobediência às normas de gênero. Dessa forma, a personagem não é apenas um objeto de desejo ou terror, mas também um reflexo das tensões históricas, sociais e culturais da Coreia, materializando o controle patriarcal sobre o corpo, a sexualidade e o papel das mulheres na sociedade.

Hanyeo (1960) é o primeiro filme de uma quadrilogia que explora esse tropo da empregada sedutora dentro do cinema sul-coreano. Em 1971, chegava aos cinemas o primeiro remake do longa de 1960. Batizado de Hwanyeo (Women of Fire), a película conta a história de um casal que vive em uma fazenda de galinhas. Sua paz termina quando uma mulher sedutora vai trabalhar no local. É a mesma premissa do filme anterior, mas com cenas de erotismo mais evidentes.
 
O terceiro filme foi lançado em 1982. Ele também se passa em uma fazenda de galinhas. Policiais chegam ao local para investigar o assassinato do proprietário da casa e de sua empregada doméstica. Com algumas diferenças no roteiro em relação ao filme de 1971, Hwanyeo '82 é um longa mais carregado de cenas eróticas. Ele é lançado em um período, onde o entretenimento sul-coreano estava permeado pelos 3 S: screen, sport and sex (tela, esporte e sexo). Essa teria sido uma estratégia do então presidente, Chun Doo-hwan, para que a população não prestasse atenção nos problemas políticos e econômicos que a Coreia do Sul estava enfrentando. 

Em 2010, chegava aos cinemas The Housemaid, dirigido por Im Sang-soo. Estrelado por Jeon Do-yeon e Lee Jung-jae, o filme atualiza essa premissa do longa de 1960, mostrando a história de uma empregada doméstica que vai trabalhar na casa de uma família muito rica. Ela passa a ter um caso com o patrão e engravida. A esposa traída está grávida e faz de tudo para não perder sua vida luxuosa e, junto com sua mãe, cria um plano para que a serviçal perca o seu filho. Esse filme, apesar de ser um remake, possui um roteiro com um sentido mais amplo. Ele não é um longa-metragem que faz manutenção da moral feminina. Ele é uma dura crítica ao capitalismo e a população mais rica da Coreia do Sul, algo que veremos também em longa-metragens como Parasita (2019) e na série Round Six (Squid Game/2021). Nesse quarto filme,  existe uma mudança significativa na questão da submissão feminina. Nos três primeiros longas, as mulheres aceitam a traição, participam do plano para eliminar o filho bastardo, mas de alguma maneira, elas não são personagens que podem ser descritas como pessoas perversas. Elas se sujeitam a situação para não sofrer algum tipo de julgamento social, visto que mulheres divorciadas são vistas de forma pejorativa na Coreia do Sul. Elas vivem em uma sociedade pouco evoluída, onde as mulheres têm poucos direitos e eram sustentadas por seus maridos. Era outro momento. No caso da película de 2010, estamos falando de uma mulher contemporânea,  extremamente vil, a qual parece estar acostumada com as traições do marido. Ao fazer da vida da empregada um inferno, ela não está buscando vingança. Ela quer fazer a manutenção de sua vida privilegiada. Por tanto, ela irá fazer de tudo para que sua situação continue intacta e sua família não seja envolvida em algum tipo de escândalo. E em todo esse cenário, por causa do seu alto padrão financeiro, ela sabe que sairá impune dessa situação. 
 

 

Além da quadrilogia, existe um outro longa-metragem que entra dentro dessa temática. Em Suddenly at Midnight (1981), um especialista em borboletas vive com sua esposa em uma casa confortável. Eles possuem uma única filha. Por causa de seu trabalho, ele é obrigado a passar vários dias fazendo trabalho de campo. Ao retornar de uma dessas viagens, volta acompanhado de uma jovem, a qual passa a trabalhar como empregada da família. Ela é uma figura bastante peculiar e possui uma boneca de louça muito estranha.  Com o tempo, a esposa do professor fica paranoica e passa a desconfiar que seu marido está tendo um caso com a jovem. Ela entra em uma fase delirante e arranja uma maneira de acabar com a vida da doméstica. Só que seus problemas pioram depois disso. Em comparação com os filmes da quadrilogia oficial, Suddenly at Midnight é um mergulho mais concreto no horror. A sequência final é um embate entre a dona de casa contra uma figura feminina sobrenatural e vingativa. Se nos outros quatro filmes, essa empregada funciona como uma espécie de ameaça, um "fantasma" hipotético que ameaça a construção familiar, nesse longa de 1981, a personagem personifica de fato essa figura fantasmagórica.
 
 


 
 Bibliografia citada:

 LEE, Hyangjin. Family, Death and the wonhon in Four Films of the 1960s. In: PEIRSE, Alison; MARTIN, Daniel (eds.). Korean Horror Cinema. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2013.

 

 

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