Filme como uma garota: Conheça Mariana Jaspe, a diretora do filme Carne



Já está mais do que comprovado que existem poucas mulheres desenvolvendo projetos cinematográficos. Quando pensamos no eixo fantástico, essa margem cai ainda mais. Por essa razão, conhecer trabalhos femininos é sempre muito bom, principalmente quando o mesmo é feito no nosso país e possui tanta qualidade. Hoje, em mais um capítulo do Final Chica, apresento para vocês um projeto brasileiro muito bacana, feito por uma cineasta muito talentosa. Trata-se do curta-metragem Carne, dirigido pela diretora e roteirista baiana Mariana Jaspe. A película está no circuito de festivais e já foi exibida no Canadá, Portugal, Áustria, Argentina, Peru e conta a história de dois jovens que aproveitam uma noite na piscina e a história acaba tomando um rumo inesperado.  Mas o curta-metragem é mais do que isso. É o primeiro projeto de terror escrito e dirigido por uma diretora negra no Brasil. Em entrevista ao Final Girl, Mariana fala sobre seu trabalho e protagonismo negro no cinema brasileiro.


[FG] Qual foi o seu primeiro contato com o cinema de terror? O que você mais gosta no gênero?


Sou filha única e sempre fui muito apegada a minha mãe. Quando eu era pequena, nós íamos todos os finais de semana à locadora. Enquanto minha mãe alugava filmes como As Pontes de Madison, eu escolhia Brinquedo Assassino, Halloween, A Hora do Pesadelo, A Noite dos Mortos-Vivos e alguns poucos filmes de Zé do Caixão, que era o que chegava na locadora do meu bairro. O que mais me encanta no gênero é a possibilidade de trabalhar com camadas, que permitem entreter ao mesmo tempo que levantam questionamentos muito profundos e reais sobre a relação entre o comportamento da sociedade e o tempo. São alegorias dos nossos medos através do tempo, pontos de contato com o que quase nunca é, ou pode ser, dito.

[FG] Carne é o seu primeiro curta. Como surgiu a ideia do filme?

CARNE surgiu do desejo de gravar numa piscina usando uma câmera GoPro. A partir dessa vontade, surgiu a mitologia/personagem de Ámân e, por último, uma história que girasse em torno dela. Mas essa história não podia ser apenas um exercício de gênero, tinha que ter camadas, questões. De repente, o desejo virou um roteiro, um encontro com atores maravilhosos, com uma equipe talentosa e com as questões que transbordam no filme. O engraçado é que, no final das contas, não filmamos com a GoPro.

[FG] Você faz um paralelo interessante entre sexualidade e canibalismo. Esse é um tema bem feminino. As mulheres são bem estereotipadas com essa coisa de ser um pedaço de carne. Qual a importância de falar sobre isso?

Não tinha pensado no filme do ponto de vista do canibalismo porque, para mim, o agente da carnificina não é humano, apesar das aparências. Minha ideia foi traçar um paralelo entre a carne e a carne, entre o que eu sou e o que você quer que eu seja, entre o lugar que estou e que ocupo e o que você acha que eu deva ocupar. O filme é sobre nós: mulheres, e principalmente, sobre nós mulheres negras. E Dan Ferreira, a partir de sua grandeza, transformou também num filme sobre homens negros. Um paralelo entre desejos, entre afetos. Mas acho interessante pensar também em canibalismo, ressignifica. Acho que a importância de falar sobre isso é o falar sobre isso, é trazer esse assunto para a pauta e propor uma reflexão, tanto para nós mulheres, quanto para os homens. É possibilitar um “dar-se conta” e abrir caminhos para uma discussão que passe, principalmente, pelo nosso entendimento de que não somos (apenas) carne e de que o outro não é (apenas) carne.

[FG] Crianças monstruosas são uma constante no cinema de terror. Por que você decidiu que o "monstro" do filme fosse uma? Quais foram tuas inspirações na criação dessa personagem?


Àmân é uma entidade sobrenatural que se alimenta de carne humana. Ela entende que, para ter acesso às suas presas, precisa se transfigurar em um ser amigável. E nada mais amistoso que uma criança, mesmo que “estranha”. Eu não tive muito poder de decisão sobre ser uma criança ou não, a história se sobrepôs à minha vontade. Minha inspiração veio da filmografia de John Carpenter, e o medo do desconhecido, mas que não é tão desconhecido assim. A caracterização da personagem foi feita/criada por Raphael Jacques (Alma Negrot), que teve total liberdade. Meu único desejo era que ela usasse um pijaminha.

[FG] O teu curta provavelmente seja o primeiro trabalho de terror que traz atores negros como protagonistas. O que é legal pelo teu pioneirismo, mas ao mesmo tempo mostra um abismo de representação. Como você analisa essa questão?

Pela pesquisa que fizemos, CARNE é o primeiro filme de terror escrito e dirigido por uma mulher negra no Brasil e também o primeiro a trazer um elenco inteiramente negro. Esse “pioneirismo” é um filme de terror em si: o cinema brasileiro nasceu em 1898 e só agora, 121 anos depois, isso aconteceu? Se o roteirista não escreve que um personagem é negro, não escalam atores negros. E quais são os personagens negros que estão sendo escritos pelos roteiristas majoritariamente brancos? Certa vez li o roteiro de um filme, no qual uma personagem negra, atualmente viúva e evangélica, mas no passado foi a mulher do “dono do morro”, estava com o filho desaparecido. Ela foi pedir ajuda ao atual chefe do tráfico e chegando lá, havia uma pilha de cocaína na mesa. Ela não se conteve e cheirou o pó na ponta de uma faca. Uma senhora negra, idosa, cheirando pó na ponta de uma faca! Que tipo de representação é essa? Que canalhice é essa? Claro que esse é um exemplo extremo, mas serve para mostrar que a questão não é somente a quantidade, mas também a qualidade. Existem inúmeros cineastas negros, incríveis, pensando e realizando produções de vanguarda como Os Irmãos Carvalho, Yasmin Thainá, Bruno Ribeiro. É só conversar com a APAN, Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, o que não falta é talento. Mas esses talentos não encontram financiamento. É um ciclo vicioso e excludente.

[FG] Como você vê a representação do negro nos filmes de terror?

Rodando com CARNE, percebi que existe uma expectativa sobre os lugares que o negro deve ocupar no cinema, tanto do ponto de vista da criação, quando da criatura. Se você faz um filme que, de alguma maneira, fuja desse lugar, gera um certo curto-circuito. No caso específico de CARNE, ouvi questionamentos sobre os lugares que os personagens ocupam, como se não fosse possível que aquelas pessoas estivessem ali. Ouvi também sobre ter escolhido fazer um filme de terror, porque usar essa ferramenta para falar sobre esse tema, se eu não achava que afastava o público. Enquanto isso, Jordan Peele bate recordes de bilheteria, leva multidões ao redor do mundo ao cinema, ganha prêmios relevantes, com filmes de gênero sobre raça, negritude, história, racismo, insurreição. Por outro lado, acredito que as pessoas escrevem sobre os seus, sobre seu meio, suas expectativas, seus desejos, seus olhares, etc. Se o cinema é, de fato, majoritariamente branco, masculino e de classe média, como o negro será representado nessa produção? Da mesma maneira que é representado no cinema mainstream, muito porcamente. Porque o cinema de terror seria diferente? Respondo sua pergunta com outra pergunta: tirando o filme O Nó do Diabo, de Ramon Porto Mota e Gabriel Martins, quantos atores negros trabalharam nos principais filmes de terror lançados no Brasil nos últimos dois anos (As Boas Maneiras, Animal Cordial, A Mata Negra, Morto Não Fala, Motorrad, Mal Nosso)?

[FG] Na tua opinião, por que o cinema de terror é pouco explorado por diretoras?

 
Talvez porque vivamos em uma sociedade que nos impõe certos padrões de desejo, de crença. Que diz que mulheres devem ser delicadas, doces e qualquer outro adjetivo que comprima e anule sua força. Nesse contexto, você cresce assistindo certos tipos de filmes e criando um imaginário que se distancia, de certa maneira, dos filmes de terror. Outro dia estava pesquisando e li a seguinte frase: É difícil imaginar uma mulher dirigindo um filme de terror, com todos os elementos grotescos que formam o gênero, mas… Tiro pela minha experiência, minha mãe me deixava assistir filmes que os pais de minhas amigas não as deixavam ver. Uma vez na escola, com nove anos, escrevi uma redação bem “aterrorizante” para os padrões de quem leu. Minha mãe foi chamada para conversar, os pais de meu colega, que escreveu comigo, não. Aquilo não era história para menina. Para mim, cinema é o encontro do desejo com as referências. Acho que tem muita mulher foda, com desejos “terroríficos”, mas que não tiveram acesso às referências que fariam despertar os mais belos filmes de terror.

[FG] Como você vê o cinema de terror feito no Brasil?

Nesse momento, vejo o cinema brasileiro, de maneira geral, com imensa preocupação. Quais interesses regem essa paralização da ANCINE? Seu futuro é uma incógnita e, consequentemente, do cinema nacional. Voltando ao cinema de terror brasileiro, eu vejo como um movimento natural esse crescente, uma vez que o terror é um reflexo dos nossos medos e somos uma sociedade, cada vez mais, mergulhada em medos e angústias. E olha só, os dois grandíssimos filmes brasileiros, de terror, produzidos nos últimos anos são de mulheres “O Animal Cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, e “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, que também dirigiram “Trabalhar Cansa”, que eu adoro. Mas vejo também com olhos que buscam negros dirigindo, atuando, fotografando, montando, escrevendo, fazendo direção de arte, desenho de som, etc, e não encontra.

[FG] Como tem sido a recepção do curta no Brasil?

A recepção do filme tem sido impressionante. CARNE é meu primeiro filme, que fiz já com 30 anos. Cheguei meio tarde “no rolê”, não pertenço a grupos, não conheço curadores, sou bem ruim de nomes e de business. Além, também, de se tratar de um filme de gênero, que culturalmente é tratado como algo menor. Mas o filme tem feito seu caminho, ele por ele, pelo que ele é, o que me deixa muitíssimo feliz. Já participamos de 30 festivais entre brasileiros e internacionais. Está bonito! Um brinde a equipe que fez o filme acontecer. CARNE faz parte da trilogia dos corpos, cuja segunda parte será filmada ainda neste semestre, se tudo der certo. FRIO é um filme sobre a última noite de liberdade de uma mulher antes que seu marido saia da prisão. Do ponto de vista do gênero, vamos trabalhar o conceito de inquietante, mas sem entrar tanto nos signos do terror. O filme foi escrito para Zezé Motta e ela topou, uma felicidade só. Agora estou levantando a verba para fazer acontecer. Inclusive se alguém se interessar, quiser conversar mais sobre o projeto e como ajudar a financiar, estou por aqui, rs.






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