[Livro] Ted Bundy: Um Estranho ao Meu lado


Em 1986, a emissora estadunidense NBC levou ao ar a minissérie de dois capítulos, The Deliberate Stranger, baseada na vida de Ted Bundy. O assassino em série foi interpretado por Mark Harmon. Naquele mesmo ano, o ator foi escolhido pela revista People como o homem mais sexy do planeta.  Depois que os episódios foram ao ar, a caixa de correios da escritora Ann Rule explodiu. Seis anos antes, a autora havia publicado o livro The Stranger Beside Me, onde narrava sua amizade com Bundy e suas reflexões sobre o caso. Centenas de mulheres lhe escreviam na esperança de conseguir o endereço da prisão da Flórida para contatar o serial killer. Se diziam apaixonadas e relatavam que ele era inocente. Rule perdeu as contas de todas as cartas que respondeu, alertando que, na realidade, elas não estavam apaixonadas por Ted, mas sim por Mark Harmon.
Mark Harmon como Ted Bundy

Parece até piada que Bundy tenha sido tão cortejado por mulheres até os seus últimos dias de vida — já que elas eram suas vítimas em potencial —, mas Ann oferece algumas pistas sobre o porquê de Bundy atrair tanta atenção em seu livro. Lançado no Brasil como Ted Bundy: Um Estranho ao Meu Lado (pela editora Darkside), a publicação narra a amizade entre Rule e Bundy, quando ambos trabalhavam em um serviço telefônico de prevenção de suicídios. O relacionamento resistiu aos crimes de Ted e, mesmo em seus dias de cárcere, Ann continuou em contato com o assassino. Algumas pessoas podem dizer que a autora continuou conversando com Ted para ter material para o seu livro. Mas eu sou profundamente cética quanto a isso. Sua narrativa mostra que Ann demorou muitos anos para ver Ted como um monstro. Ele era um homem bonito, simpático, solícito. Esse Bundy seria incapaz de matar um mosquito. Esse era o amigo de Rule. Essa era a imagem que seduzia as mulheres. E durante a sua escrita, é perceptível que ela estava vivendo em um montanha-russa de emoções. Em alguns momentos é tão simples acreditar que Ted é um assassino em série. Em outros momentos, a autora só consegue ver o bom rapaz.
A escritora Ann Rule
Ann, antes de conhecer Bundy, já explorava crimes verdadeiros em artigos para o tabloide True Detective, publicação que abordava crimes ocorridos em todo os Estados Unidos. A escritora era a correspondente do estado de Washington. Por essa razão tinha um contato tão próximo com a polícia local. O caso de Ted a transformou em uma escritora de sucesso. Depois de Um Estranho ao Meu Lado, ela ainda lançaria mais 34 livros. Pelo seu conhecimento, era convidada para dar palestrar para policiais em todo o país, e em conferências especializadas em crimes. Era considerada a rainha americana dos crimes reais. Era uma profissional de uma extrema seriedade.

A maioria dos livros sobre true crime que tive a oportunidade de ler, assim como os programas televisivos que já assisti, quase sempre tem essa tendência de explorar todos os pormenores sobre o assassino, esquecendo de suas vítimas. E aí que mora a grandeza da literatura de Ann. Em seu livro sobre Bundy, houve momentos que ela foi extremamente doce ao falar do seu amigo, mas em nenhum momento perde o foco. Ela mostra o seu processo de aceitação. A incredulidade inicial, as dúvidas, e as certezas. E é extremamente respeitosa com as mulheres que foram cruelmente assassinadas por Bundy. Ela fala sobre elas, as humaniza, dá rosto para cada uma delas, conta suas histórias, e a maneira que suas vidas foram ceifadas. Rule não as enxerga como um número, mas sim da maneira apropriada. Essa combinação de conhecimento técnico e inteligência emocional da autora fazem com que Um Estanho ao Meu Lado não seja mais um livro sobre Bundy. Mas o material definitivo sobre ele. Ann conseguia ver os dois lados da moeda, por mais difícil que isso poderia ser. Afinal de contas, ela nutria uma afeição por aquele estudante tão aplicado, que gostava de política e que era tão carismático, e sedutor. Ele podia não parecer um assassino. Não tinha o estereótipo de um criminoso, mas era capaz de matar. Como diria Rule, o mal às vezes vem em pacotes bonitos.


A suposta beleza de Bundy o transformou em um dos produtos mais rentáveis da indústria dos serial killers. Sim, isso existe de verdade! Segundo o livro Natural Born Celebrities (ainda inédito no Brasil), existe um culto aos assassinos em série. Produtos audiovisuais, musicais, literários, itens para colecionadores, são amplamente comercializados desde a década de 1970, quando esses tipo de crime começou a se tornar evidente nos EUA. Bundy, em todos os seus julgamentos, por ser “bonito”, ganhou o status de celebridade mundial, graças a um lado equivocado da cobertura de seu caso, a qual contribuia para que a imagem do assassino fosse explorada das mais variadas formas. No tudo pela audiência, em muitos momentos, seus crimes foram minimizados. E Ted manipulou o jogo muito bem, pois sabia que a mídia precisava dele, que a imprensa tinha esse lado negro. Algum tempo antes de morrer, Ted concedeu uma entrevista para a revista Newsweek no corredor da morte. A mesma resultou em um artigo e em dois livros:  The Only Living Witness e Ted Bundy : Conversations with a Killer, ambos escritos pelos jornalistas Stephen G. Michaud e Hugh Aynesworth.


Conversations with a Killer serviu de base para a série do Netflix, Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes. Bundy, durante as conversas com os jornalistas, sempre demonstrou nas entrelinhas que queria ter sua história imortalizada. Algumas pessoas acreditavam que ele tentava consolidar uma narrativa de inocência com a ajuda dos entrevistadores. Mas, para o jornalista Stephen G. Michaud, era mais do que isso. Bundy também queria exaltar seus feitos. Ter alguém para registrar a sua passagem “mítica” pela terra. A maioria dos serial killers enxerga suas vítimas como troféus e Bundy demonstrava, através do seu comportamento, que não sentia remorso. Tudo era um show. Ele gostava da atenção. O jornalista disse, no primeiro episódio da minissérie sobre Bundy no Netflix, que quando o entrevistou, ele era apenas um jovem repórter e acredita que só conseguira a entrevista por isso, pois o assassino acreditava que ele poderia ser manipulado. 

Eu acredito muito que ele continuou conversando com Ann Rule, mesmo depois de saber que ela tinha sido contratada para escrever um livro sobre ele, pelo mesmo propósito. Pois ele queria que ela contasse a sua história. E ele, acreditando que ela era sua amiga, seria facilmente manipulada, e talvez apresentasse uma narrativa de que ele era somente um ex-universitário inocente, que foi preso injustamente. Como ele não conseguiu enganar Rule, assim como conseguira com tantas outras pessoas, assumiu um lado agressivo, sempre desmerecendo o trabalho investigativo da autora. Por isso que o livro Um Estranho ao Meu Lado é tão importante. Ela não cedeu, mostrou ao mundo como Bundy era perigoso, que tinha essa dualidade comportamental, que cambiava radicalmente em minutos, e deu voz aos familiares, e para as vítimas desse homem tão monstruoso. Em um primeiro momento, questionei se Ann Rule estava fazendo parte do circo midiático em torno de Ted, tirando vantagem. Mas não consigo ver por esse lado. Ela não devia nada a ele e seus relatos fazem justiça com as pessoas que perderam suas vidas... Além de ser uma aula de como escrever sobre true crime: escute todas as partes.


O livro de Anne é um trabalho tão incrível que recebeu uma adaptação para a TV. O filme homônimo foi lançado em 2003. Recentemente a Netflix lançou Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile. Uma das coisas mais legais do filme, além da interpretação gloriosa de Zac Effron como o assassino, são as inserções de dados e frases do livro de Ann. O filme foi baseado na publicação da ex-namorada de Bundy, intítulado The Phantom Prince: My Life with Ted Bundy, mas o material de Rule foi importantíssimo para complementar a narrativa. Se você gosta de livros que abordam crimes reais, criminologia, investigação, trabalhados de forma profissional, você precisa conhecer o livro de Ann Rule. 


The Stranger Beside Me (2003) - Direção: Paul Shapiro

Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes (2018) - Direção: Joe Berlinger

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