Os casos de 1992: Evandro e as meninas de Alcácer





O ano de 1992 gerou dois casos policiais complexos e cheios de reviravoltas em duas partes diferentes do globo. O primeiro ocorreu em Guaratuba (PR). Um menino, chamado Evandro Ramos Caetano, então com 6 anos, desapareceu misteriosamente no dia 6 de abril daquele ano. Alguns dias depois, a criança foi encontrada em uma área remota da cidade litorânea, sem as mãos, cabelos e vísceras. O crime teve muita repercussão midiática na época, principalmente por envolver pessoas importantes do município paranaense: a esposa do então prefeito Aldo Abbage, Celina Abbage, e uma das filhas do casal, Beatriz Abbage. Elas foram presas pela polícia, acusadas de sequestrar o menor para efetuar um ritual de magia negra na serraria da família. A história possui vários envolvidos e muitas camadas, as quais estão sendo abordadas de forma competente pelo professor e jornalista Ivan Mizanzuk, Nos episódios da quarta temporada do Projeto Humanos, o podcaster explora a investigação criminal e os pontos positivos e negativos da mesma. Apresenta o panorama midiático da época, o qual era bastante intenso. Os meios de comunicação chamavam o crime de "caso das bruxas de Guaratuba", o que dava um tom mais sensacionalista para o fato. E a história foi sempre noticiada com voracidade e acabou entrando para o imaginário coletivo dos paranaenses. As crianças, em geral, começaram a temer essas “bruxas” e a sensação de medo pairava pelo ar, principalmente porque na época haviam muitos casos de menores desaparecidos no Paraná.   No podcast, Ivan também aborda os diversos júris do caso e as pessoas que, de alguma maneira, se envolveram na narrativa do crime ou tentaram modificá-la.
Evandro Ramos Caetano
O outro caso ocorreu em Alcácer, cidade próxima de Valencia, na Espanha. Era novembro. Três jovens, chamadas Miriam, Antonia e Desirée, decidem participar de uma festa de sua escola, a qual aconteceria na cidade vizinha, em uma boate chamada Cooler. Elas pegam uma carona para chegar ao local, mas nunca apareceram na confraternização. Elas ficaram desaparecidas por mais de setenta dias.  E essa história virou um documentário do Netflix, chamado O Caso de Alcácer. Dividido em 5 episódios, o diretor León Siminiani mostra como o crime transformou-se em um verdadeiro espetáculo midiático, comandado por programas sensacionalistas da época. Além disso, o especial foi atrás de detalhes da problemática investigação, a qual resultou na prisão de Miguel Ricart. Ele passou vinte anos na prisão. O outro acusado, o brasileiro Antônio Anglés, conseguiu fugir e nunca foi capturado. Como existem lacunas gigantescas no processo, nas necropsias e na análise dos materiais encontrados no local onde as jovens foram enterradas — além de uma guerra entre os médicos legistas do caso, existe até hoje uma grande desconfiança popular sobre quem são os verdadeiros responsáveis pelos crimes. O pai de Miriam, Fernando Garcia, também não estava contente com os resultados da polícia e se uniu ao jornalista Juan Ignacio Blanco. Juntos, fizeram uma controversa investigação paralela. Garcia passou anos peregrinando por programas televisivos, afirmando que a polícia de Alcácer estava protegendo os verdadeiros acusados, os quais eram, na verdade, homens poderosos da região de Valencia. Na versão de Garcia e de Blanco, as meninas teriam sido sequestradas para serem mortas em um filme snuff. Juan, inclusive, afirmou diversas vezes que recebeu a fita do filme, mas nunca mostrou a mesma para ninguém. Eles foram processados diversas vezes por causa de suas acusações.
Desirée, Miriam e Antonia


Juan e Fernando alimentaram por anos a mídia sensacionalista, mantendo-se em evidência e, inclusive, criaram uma fundação para arrecadar fundos para ajudar famílias vítimas de crimes como os das meninas de Alcácer, a qual passou por uma profunda investigação depois que alguns pais de outros jovens assassinados terem contratado os serviços de investigação da dupla e nunca terem recebido respostas. A cereja do bolo para o processo foi uma ocasião em que Blanco e Garcia levaram fotos da necropsia de uma jovem e a exibiram na televisão. A mãe da garota, a qual se negava ver as imagens do processo, foi obrigada a ver sua filha morta em rede nacional. Não era a primeira vez que eles faziam isso. Eles chegaram a mostrar várias partes do processo das três meninas em um dos programas, causando a indignação da mãe de Desirée. Ela chegou a pedir que Garcia e Blanco não mencionasse mais o nome da filha e também não quis fazer parte da organização que ele criara.
A mídia espanhola fazia qualquer coisa por pontos de audiência. Os programas vespertinos brasileiros parecem bom jornalismo perto das atrocidades que eram mostradas pelos canais da época no país europeu. Os excessos da imprensa da Espanha foram muitos. Os jornalistas perseguiam os pais das jovens até mesmo dentro de suas casas, colocando a câmera em seus rostos. Alguns familiares descobriram que suas filhas haviam sido encontradas pela TV, antes mesmo que a polícia constatasse que eram as garotas. O circo era tão grande que, uma noite depois que as jovens foram finalmente encontradas, a jornalista Nieves Navarro comandou seu programa De tú a tú diretamente de Alcácer. Os pais das meninas e parentes estavam lá. O show de horrores foi tão grande que, no meio da entrevista, falando com o prefeito da cidade, Navarro pergunta: as jovens foram abusadas? Desconcertado, o homem apenas responde que não dava para saber, pois ele só tinha visto os corpos, que conclusões só poderiam ser dadas depois de exames. Em outro momento, a jornalista entrevista uma menina da mesma idade das vítimas, a qual pede o assassinato dos responsáveis pelo crime, sendo ovacionada pela audiência. Em outro minuto grotesco, o pai de Miriam está falando e é interrompido por pedidos de pena de morte vindos do auditório. Nieves Navarro, que comandou todo esse evento sinistro, atualmente trabalha em uma rádio e não aceitou ser entrevistada pelo Netflix. Apenas o jornalista Paco Lobatón participou. Na época do crime, ele comandava o programa rival de Navarro, o Quién Sabe Dónde. Ele reconheceu todos os abusos feitos pela imprensa na época.

O Netflix mexeu em um verdadeiro vespeiro e fez um trabalho que me deixou com sentimentos muito divididos, visto que o documentário tem o sensacionalismo como fio condutor. Eu acho que eles deveriam ter mostrado mais sobre como esse crime mexeu com a liberdade das mulheres da Espanha. Em muitos momentos, a mídia espanhola bradou aos quatro cantos que o fato só aconteceu, pois as jovens não estavam em casa em um certo horário, que elas eram culpadas por sua própria tragédia, por terem ido até um lugar pedindo carona, por terem saído à noite sozinhas. E essa linha narrativa patriarcal se seguiu pelos anos posteriores, quando novos crimes contra mulheres aconteceram na Espanha. Ou seja, até hoje o crime bárbaro das três meninas é motivo de intimidação feminina. Depois de anos de luta, para que a mulher espanhola pudesse ocupar novos espaços, o caso fez que toda essa caminhada regredisse, pois o medo imperava no país. Em quem confiar? Então, quando esse fantasma estava quase desaparecendo, o documentarista vai lá, acorda o "monstro" e não existe nada de novo no debate, pois quem tem lugar de fala no documentário são as mesmas pessoas que iam para a televisão na época do crime e que tinham uma narrativa sensacionalista. As pessoas que digeriram o fato, que viram como a mídia tratou o caso, que problematizaram, resolveram se calar e não participar desse novo levante do crime, incluindo a jornalista Nieves Navarro.

A cientista política espanhola Nerea Barjola possui a mesma opinião. Recentemente, ela lançou o livro Microfísica Sexista del Poder: el Caso Alcàsser y la Construcción del Terror Sexual, onde analisa o acontecimento e o impacto disso na sexualidade feminina espanhola. Em recente entrevista para o site espanhol La Marea, Barjola se mostrou bastante descontente com o que foi mostrado pelo streaming, afirmando que esse assunto deve ser esquecido.

(...) A série não tem perspectiva feminista. Em minha opinião, é um final forçado pela própria dinâmica dos acontecimentos, mas não é honesto. Se assim fosse, não teriam divulgado — mais uma vez— imagens e comentários que aprofundam a ferida coletiva e o terror sexual de toda uma geração de mulheres.

Acho importante comparar a abordagem do Caso Evandro com o documentário da Netflix, pois são dois crimes muito parecidos, que ocorreram em 1992, e que possuem problemas investigativos bem pontuais, muito pelo fato de que a criminologia não era tão avançada na época que ocorreram. Muitos dos materiais encontrados nos locais dos crimes não puderam passar por um detalhado exame de DNA e as locações não foram totalmente preservadas. Exames atuais, muito comuns, teriam ajudado a dar uma solução mais simplificada aos casos, para que não repercutissem por tanto tempo. Os acontecimentos de Guaratuba e de Alcácer dominaram os noticiários por um longo período, explorando a comoção popular e a dor dos familiares. E isso poderia ter sido evitado. Além disso, os julgamentos de ambos os crimes foram um verdadeiro circo. No Caso de Alcácer, por exemplo, o tapete onde as vítimas foram enroladas, que continham pelos humanos de no mínimo sete pessoas diferentes, podendo indicar que haviam mais envolvidos no crime, ficou anos desaparecido, mantido na casa de um dos legistas e só fora devolvido durante o julgamento do único acusado que foi preso. No caso Evandro, um exame de DNA mais moderno comprovaria  que o corpo encontrado em Guaratuba era mesmo o garotinho. A justiça poderia ter encontrado mais respostas, como a real identidade da outra criança, encontrada morta na cidade quando os acusados já estavam presos.

Para piorar tudo isso, ambos os crimes foram prejudicados pelos equívocos da mídia. Existe toda uma complexidade na narrativa de ambos e são terrenos bem difíceis de andar e de acompanhar, pois são histórias de puro terror. Pessoas foram mortas de maneira brutal. E a mídia foi leviana em muitas circunstâncias, ao revelar informações confidenciais. Por isso acho tão louvável o trabalho do Ivan Mizanzuki. Vejo que ele tem um comprometimento ético muito grande ao falar sobre o crime cometido contra o Evandro, fez uma pesquisa muito completa, foi atrás de todos os lados, respeita a família do menino, os acusados. O Netflix, por mais que tenha feito um documentário com tantos recursos técnicos, com um grande orçamento, parece apenas repetir o velho sensacionalismo de outrora. Quando os realizadores tentam ligar os pontos, sempre o raciocínio é interrompido por algo bizarro que aconteceu na época. Por exemplo, se eles tiveram a oportunidade de falar com o legista que tinha a prova em sua casa, por que não concentraram mais tempo nisso e em outros aspectos que eram importantes para ligar esses fios desconexos? Por que focar nas imagens da briga que aconteceu dentro do júri apenas? Isso faz com que eu tenha dúvidas sobre qual a real intenção deles em abordar esse assunto. No Caso Evandro, eu vejo que o Mizanzuki tenta buscar respostas. É puro jornalismo investigativo de grande qualidade. Em O Caso de Alcácer, eu percebo apenas pessoas colocando uma comida velha no fogão, que estava há muito tempo na geladeira. Eles tentam aquecer um fato que mexe com a opinião pública para ver o que podem extrair disso. Infelizmente, apenas mudam as pessoas que tentam angariar audiência através da morte dessas três meninas. Nada parece ter mudado na Espanha.

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