(Review) Conversando com um serial killer: Ted Bundy - A nova série policial do Netflix



O filósofo estadunidense Noël Carroll, em seu livro Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração, afirma que existem dois tipos de terror: o artístico, que nós vemos nas telonas, na literatura, nas séries da televisão. E o terror natural, que faz parte do nosso cotidiano. Em muitas safras do cinema de horror, como o torture porn (que surgiu no começo da década de 2000), ou até mesmo no cinema australiano, nos chamados ozploitation, a linha entre o terror artístico e o terror natural é muito tênue. A maioria dos "monstros" são sempre seres humanos que poderiam ser encontrados em nosso cotidiano. Até mesmo um dos maiores serial killers do slasher, Michael Myers, é uma criatura que poderia fazer parte da vida real. Um Jason, um Freddy, um Pinhead, já são figuras mais fantasiosas e distantes. 


E se eu puder afirmar com veemência sobre os filmes de terror que me dão medo... seriam justamente esses que se passam na realidade, por assim dizer. Um exemplo é a película Wolf Creek, que é uma película estrelada por um assassino em série "real", sem nuances sobrenaturais, e que poderia perfeitamente ser o vizinho da casa ao lado, caso eu morasse na Austrália. Outro filme elementar para entender o que eu estou tentando expressar é justamente O Silêncio dos Inocentes, que é um longa baseado profundamente em horror natural. O longa-metragem possui elementos extraídos da história de três serial killers muito famosos: o canibal Ed Gein, Gary Heidnick, que costumava sequestrar suas vítimas e colocá-las no porão de sua casa, e Ted Bundy, assassino em série que matou várias mulheres nos estados americanos de Washington, Utah, Colorado e Flórida.


Bundy, por sua vez, graças a sua personalidade expansiva e narcisista, por assim dizer, acabou se transformando em uma figura bastante conhecida nos Estados Unidos. Durante o tempo em que ficou encarcerado, basicamente criou um circo midiático para si próprio, sempre conversando com a imprensa, "tentando provar sua inocência". Sabe o filme Assasssinos Por Natureza do Oliver Stone? Ted era uma espécie de Mickey e Mallory da vida real. E esse "show" era nutrido por um conflito popular: algumas pessoas acreditavam mesmo na inocência de Bundy, pois ele tinha uma oratória muito convincente (o que costuma ser um traço comum em pessoas que possuem algum tipo de psicopatia), e isso acabou transformando-o em uma espécie de "celebridade" na época. Ele chegou até a receber cartas de mulheres que o achavam um "bom-partido".  Outros populares nutriam por ele um desprezo total, justamente por causa da natureza de seus crimes, os quais eram extremamente brutais. Uma coisa que também inconformava essa parte da população era o fato de que ele estava sempre sorrindo, independente de onde estivesse: no tribunal, na prisão. Um comportamento que também o ajudava a agregar popularidade, pois todo mundo falava sobre isso na época.


O assassino era um prato cheio para o jornalismo sensacionalista, mas também para profissionais sérios que fizeram um trabalho interessante sobre o assunto, como o caso dos jornalistas investigativos Hugh Aynesworth e Stephen G. Michaud. Eles aproveitaram o desejo por atenção de Bundy e gravaram durante meses mais de cem horas de entrevistas com o serial killer, a fim de fazer uma matéria para a revista Newsweek. As gravações se transformaram em um perfil completo de Bundy na publicação e, posteriormente, no livro Ted Bundy: Conversations with a Killer, lançado em 1989, ano em que Ted foi executado em uma prisão na Flórida. E essa história acaba de ganhar mais um capítulo. A Netflix acaba de lançar a minissérie Conversando com um serial killer: Ted Bundy (Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes), dirigida por Joe Berlinger. 


A série traça uma linha, partindo da infância de Bundy até o dia de sua morte, misturando material de arquivo, entrevistas com os jornalistas que gravaram as fitas com o assassino, Carol DaRonch (a vítima que conseguiu escapar do ataque de Bundy em Utah), suas ex-namoradas, policiais que participaram das investigações. Mas o que realmente me impressionou em todo o projeto foi justamente o show de Bundy.
Mesmo que eu não concorde que a minissérie seja tão assustadora, as imagens de Bundy dando entrevistas para a televisão, com um olhar completamente vazio, os inserts de narração do próprio assassino, descrevendo sua vida, e minimizando tudo que acontecera com uma frieza total, me deixou bastante perplexa. A impressão que eu tive sobre ele foi a seguinte: ele era um homem que parecia ser completamente oco, sem emoções, sem alma. E em alguns momentos, de alguma maneira, ele era preenchido por um homem extremamente educado e convincente, o qual você nunca diria que é um assassino em série frio, calculista. Em outros momentos, porém, a personalidade mudava totalmente e ele parecia ser era capaz de tudo. Eu percebi isso em dois momentos: nas entrevistas para a televisão que eu já mencionei, onde ele fala com muita calma, sem tirar o sorriso do rosto, mas quando confrontado sobre os crimes, seus olhos se esvaziam totalmente, ele diz ser inocente, mas era incapaz de fazer tal afirmação fitando o olhar dos entrevistadores. Em outro momento, quando apresentam provas contra ele, dentro do tribunal, você pode ver o ódio, o olhar fixo, a insanidade temporária que, acredito eu, só tenha sido presenciada pelas mulheres que ele matou, e por Carol, a vítima que teve a sorte de sobreviver. Um lampejo de ira que ele precisou controlar muito bem para continuar com seu show dentro do tribunal, já que ele foi responsável pela sua própria defesa.


Eu gostei bastante da minissérie, justamente por ela mostrar que a linha entre o horror natural e artístico é muito frágil. Ted Bundy era um monstro natural, passava despercebido, parecendo ser uma pessoa "normal", mas sua insanidade fez o mundo real parecer com um set de filmagens de um filme de terror para suas vítimas, meninas que perderam a oportunidade de viver e ter sua própria história. E agora, através dessa série, dos livros que foram escritos sobre os crimes, e dos filmes que retratam sua vida, ele recebeu também, de alguma maneira, um viés de terror artístico. O assassino narcisista Ted Bundy conseguiu o que ele queria: se tornar uma espécie de celebridade macabra, habitando a ficção e a realidade. E muita gente colaborou para que isso acontecesse, mesmo que indiretamente, como a sua amiga, a escritora Ann Rule.

A Darkside Books vai lançar o livro Ted Bundy: Um Estranho ao meu lado, escrito por ela, no dia 21 de março.


Rule, a qual já é falecida, foi colega de trabalho e amiga de Bundy, e na publicação, a qual vendeu milhares de cópias nos Estados Unidos, a autora descreve de forma bastante detalhista como era o assassino na intimidade. Ann era uma escritora amadora e, tão logo começaram os desaparecimentos das mulheres em Washington, começou a ligar os pontos e realmente passou a acreditar que Bundy poderia ser o responsável pelos crimes, mas foi ignorada pela polícia. 
Ela resolvera então começar a escrever um livro sobre Ted e, mesmo no calor dos acontecimentos, com novos casos de rapto de jovens pipocando em outros estados, atribuídos a ele, ela tivera coragem de sair com Bundy duas vezes, em suas passagens por Seattle, quando este já estava estabelecido e tocando o terror em Utah. A amizade dos dois era bastante controversa. Mesmo sabendo de sua natureza criminosa, Ann o ajudou em diversas oportunidades e creio que seu livro seja interessante por isso. É o olhar de uma pessoa que se importava com Bundy e, apesar de ter a consciência de toda a sua natureza perversa, o via como um ser humano que poderia ser ajudado, e até mesmo  recuperado. A minha descrença é profunda quanto a isso e não consegui observar nenhum tipo de "humanidade" nele no documentário da Netflix e por isso quero muito ler o livro. Não em busca de redenção para Bundy. Apenas estou sendo movida pela minha curiosidade.

Bundy e Rule


A edição da Darkside

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