Kim Ji-young: Born 1982 (2019)

 

A maioria dos países asiáticos têm uma premissa de que os seus habitantes são uma espécie de super-heróis inquebráveis, que devem sempre seguir todos os dogmas sociais de forma resiliente. As falhas não são vistas com bons olhos. Além disso, os cidadãos devem buscar desesperadamente pelo sucesso profissional. Obviamente, todas essas exigências comprometem a saúde mental de muitas pessoas. É uma vida preenchida por muita pressão. Você precisa ser o melhor na escola, da faculdade, no casamento... 

 

E no caso da Coreia do Sul, apesar de ser um país com tanto crescimento por causa do seu rápido boom econômico, a nação não consegue ofertar oportunidades para todos. O capitalismo causa desigualdade em toda a parte. As taxas de desemprego entre jovens sul-coreanos são bastante altas e uma grande parcela dos idosos vivem em uma situação de extrema pobreza por causa do sistema previdenciário. Ou seja, você é cobrado extremamente para ser bem-sucedido, mas a estrutura do país não permite que você consiga alcançar sua meta. E com a compressão das oportunidades, a tendência é de que as pessoas sintam-se ainda mais pressionadas. E para piorar todo esse quadro,  mesmo nesse contexto problemático, falar sobre saúde mental ainda é um grande tabu para a sociedade coreana. Há uma necessidade gigantesca de que exista um diálogo sobre o assunto, visto que o país tem números alarmantes de suicídio. A Coreia do Sul ocupa atualmente a 4º posição em um ranking mundial da OMS. Mas infelizmente... Não existe uma abertura muito grande para que esse tipo de tópico seja abordado com naturalidade. Por essa razão, quando o drama Kim Ji Young: Nascida em 1982 (2019) foi lançado nos cinemas, um grande alvoroço foi criado em torno da produção, principalmente porque o longa-metragem atreveu-se a colocar o dedo nessas feridas abertas, em questões que são trivialmente colocadas embaixo do tapete. 


Kim Ji Young
(Jung Yu Mi) se sente sufocada pelas obrigações, pela família do marido e pelo machismo estrutural. Ela acaba entrando em depressão por causa da pressão interna e externa que sofre diariamente. Antes de ser mãe, Ji Young trabalhava e tinha bastante sucesso profissional. Como muitas coreanas, ela abandona o seu emprego para cumprir os desígnios da maternidade e fica completamente aprisionada pela situação. Com o tempo, ela começa a agir de forma muito estranha: começa a falar como se fosse sua avó, sua mãe e outras mulheres de sua família. Isso acende um alerta vermelho em seu marido, Jung Dae Hyun (Gong Yoo).  Ele começa a pesquisar sobre depressão pós-parto e tenta ajudá-la, incentivando que ela procure um psiquiatra. 


A partir do filme, debates sobre a situação das mulheres dentro da sociedade coreana se intensificaram, principalmente sobre esse tópico tão sensível: a maternidade. As mães coreanas são submetidas a um acumulo de tarefas diárias e culturais. Precisam ser perfeitas fisicamente e como genitoras. Só que a experiência de ter um filho é algo muito particular. Mesmo que a maternidade seja estereotipada como algo destinado para a mulher, como uma espécie de missão, cada mãe enfrenta diferentes realidades ao parir. É uma tarefa extenuante, pois na maioria das vezes, não só na Coreia, a tarefa de cuidar e educar os filhos é quase sempre uma responsabilidade exclusiva das mulheres. Ao assumir o papel de mãe, exige-se que a mulher perca a sua individualidade, assumindo o papel de defensora do bem-estar daqueles que a cercam. E esse fator é muito cobrado pelas sogras sul-coreanas.

Existe uma grande dissonância geracional entre as sogras e as noras na Coreia do Sul. As mulheres mais velhas foram criadas em uma sociedade permeada pelo machismo estrutural e acabam reproduzindo esse padrão, mesmo que de forma inconsciente. Segundo as tradições, a esposa deve ficar em casa, cuidar dos filhos e devem zelar pelo seu marido, sendo vistas meramente como “substitutas das mães dos seus cônjuges” Os homens não devem assumir nenhuma tarefa doméstica. Eles devem apenas prover o lar. E como atualmente muitas mulheres trabalham fora de suas casas, as sogras acabam tornando-se uma espécie de fantasma na vida dos casais, exigindo demais de suas noras. Toda e qualquer ambição profissional feminina é condenada pela população mais idosa.  E obviamente, as novas gerações de coreanas não querem viver dessa forma tão arcaica. Porém, elas aprendem desde cedo que devem respeitar os mais velhos, mesmo que isso represente a abdicação total de seu bem-estar. Passam a viver então em um constante embate interno, o qual é mostrado de forma perfeita pela atriz Jung Yu Mi durante a película. Ela sente um vazio profundo, uma sensação constante de afogamento. 

O filme é muito visceral e é uma importante ferramenta para amplificar a mensagem do livro em que a história da película é baseada. A obra homônima, escrita pela ex-roteirista Cho Nam-Joo, iniciou uma discussão vital sobre a saúde mental feminina, sobre o verdadeiro custo de todas essas cobranças sociais. A publicação tornou-se rapidamente um best-seller no país. Nam-Joo deu voz para muitas mulheres angustiadas, vigiadas e colocadas em segundo plano pelos seus familiares. A escritora fez algo muito poderoso e desafiador para os padrões da Coreia do Sul: conseguiu verbalizar aquilo que só estava preso no âmbito do pensamento de muitas sul-coreanas. Elas estão fartas de serem "escravizadas" pelas tradições e por seu próprio gênero.


Vale lembrar que o livro Kim Ji-Young: Nascida em 1982 chega ao Brasil em março através da Editora Intrínseca







Kim Ji-young: Born 1982 (82 nyeonsaeng Kim Ji-yeong/2019)

Direção: Kim Do-Young

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