As nuances do horror da Coreia do Sul: 1950 – 2022


 

Hoje trago um breve panorama sobre a produção audiovisual de horror na Coreia do Sul. Abordarei o desenvolvimento do gênero a partir da década de 1950, passando por temas abordados, longas importantes e diretores fundamentais para o desenvolvimento do terror no país.

 

1950 – 1970

 

The Housemaid (1960)

 

A partir da década de 50, após o fim da invasão japonesa na Coreia do Sul e a interrupção da Guerra da Coreia, tem início a chamada década de ouro do cinema sul-coreano. Nesse período, alguns diretores começam a inserir elementos sobrenaturais em suas narrativas, mas somente a partir de 1960 começam a ser produzidos filmes de horror efetivamente. Nesse momento, as produções são divididas entre várias películas de terror doméstico e longas sobre lendas e personagens folclóricos coreanos como o gumiho (a raposa de nove caudas) e as wonhon (espíritos vingativos femininos). A premissa desses filmes sempre envolvia a manutenção da moralidade e do conservadorismo. As histórias quase sempre abordavam uma ameaça constante contra os padrões morais e sociais do país, personificados em mulheres e homens adúlteros, e fantasmas e criaturas mágicas. 

 

   Thousand Years Old Fox (1969)

 

A maioria das produções cinematográficas tinham o lar como a principal locação. Porém, segundo os pesquisadores Alison Peirse e James Byrne [1], a inserção do gumiho nas narrativas de terror permitiu uma ampliação do leque temático das películas, retirando o horror sul-coreano de espaços claustrofóbicos domésticos e urbanos. A região rural do país passa a ser um cenário comum nos filmes. Esse tipo de ambientação também é explorada pelas produções com monstros gigantes que começaram a se popularizar pela Ásia após a concepção de Godzilla (1954). São os chamados Kaiju Eiga, longa-metragens e séries nipônicas carregados de efeitos especiais. A Coreia do Sul não ficou para trás e, em 1962, uma das lendas sul-coreanas mais famosas foi levada para as telonas. Trata-se de Bulgasari, película dirigida por Kim Myeong-je. Esse filme, que aborda a história de um monstro gigantesco devorador de metal, serviu de inspiração para o único longa de gênero fantástico criado pela Coreia do Norte, Pulgasari (1985). Bulgasari, porém, não foi um caso isolado. Outras produções começaram a explorar o tema na filmografia sul-coreana, como Yongary (1967), The Host (2006), Sector 7 (2011), Monstrum (2018), entre outros.
 

A guerra entre as Coreias também é um tema constante no cinema de horror sul-coreano desde 1950. Como o conflito nunca terminou de fato, paira no ar uma angústia provocada pela imprevisibilidade dos governantes da Coreia do Norte. E como longa-metragens de terror costumam funcionar como um mecanismo de catarse e escapismo, vários títulos começaram a ser produzidos explorando essa temática. Muitos deles possuem, inclusive, uma crítica velada ao regime comunista do país vizinho.


70 – 90

 
 

A Woman Chasing a Killer Butterfly (1978)

 

Durante os anos 50 e 60, com a ajuda dos Estados Unidos, vários estúdios de cinema foram criados na Coreia do Sul. Só que, a partir de 1972, o país entra em uma ditadura militar mais agressiva. O então presidente, Park Chung-hae, declarou lei marcial no país, retirando todos os direitos dos cidadãos por causa da suposta ameaça comunista. Isso refletiu diretamente no cinema. Se algum filme fosse produzido e não seguisse as demandas governamentais, ele seria duramente censurado e o estúdio que o produziu era fechado.

A censura tornou-se tão rigorosa que até mesmo uma cena em que um personagem reclamava muito fortemente sobre o tempo poderia ser considerada “antissocial” e ordenada a ser removida. Em um ano, a lei insistiu que todas as produtoras deveriam fazer quinze filmes, obrigando-as a crescer; no próximo, reverteria, proibindo qualquer empresa de fazer mais de cinco filmes e produtores, tendo acabado de se esforçar muito para expandir, então poderiam produzir uma ampla gama de filmes, agora foram proibidos de fazê-lo. O sistema tinha caído em uma farsa de incompetência, corrupção e assédio moral. (Fisher, 90 – 91, 2015) [2]

Por causa da ditadura, a produção de horror sul-coreana diminuiu consideravelmente. Segundo Art Black, nesse período “os fãs de horror tiveram que se contentar com os habituais melodramas trágicos disfarçados como histórias de fantasmas baratas”. [3] O diretor mais proeminente do período foi Kim Ki-young. Além de ter sido o pai do cinema de horror moderno sul-coreano com The Housemaid (1960), o cineasta desafiou a censura e lançou na década de 70 os longa-metragens The Women of Fire (1971), The Insect Woman (1972), Iodo (1977) e A Woman Chasing a Killer Butterfly (1978), produções muito importantes do período. O regime militar durou até 1979, mas a indústria cinematográfica demorou para se recuperar. Os longa-metragens de horror praticamente deixaram de existir na década de 80. O terror ressurge na década de 90 com a franquia Whispering Corridors. O primeiro longa é lançado em 1998.


90 - 2000

 

Whispering Corridors (1998)


A retomada do cinema de horror sul-coreano da década de 90 foi impulsionada pelos filmes da franquia Whispering Corridors, a qual explora a temática adolescente e personagens fantasmagóricos, tendo escolas femininas como pano de fundo. O monstro central é a yeogwi, um tipo de fantasma feminino vingativo. Esse tropo narrativo continuará sendo explorado anos mais tarde em outras produções, como Shadows in the Palace (2007) e Phone (2002). Vale lembrar que esse tipo de personagem sempre esteve presente nas narrativas coreanas mais antigas, como A Public Cemetery Under the Moon (1967) e Suddenly in the Dark (1981). A franquia Whispering Corridors revitaliza esse arquétipo para as audiências contemporâneas.

Muitos dos longa-metragens que começam a ser produzidos na década de 90 exploram o horror sem o uso constante de jump scares ou gore excessivo. O terror é muito mais subjetivo. Obviamente, existem produções que abordam o horror corporal, mas eles são uma minoria. A maioria dos filmes focam no realismo, na própria humanidade dos personagens, nos conflitos dos adolescentes. É um terror extremamente palpável. É importante dizer que essas narrativas escolares são projeções de toda a ansiedade sentida pelos jovens sul-coreanos. Eles costumam estar imersos em longas jornadas de estudo e são muito cobrados pelos adultos. Além disso, dentro das escolas, existe um grande problema de bullying. Sem falar, é claro, dos modos arcaicos disciplinares usados por alguns professores. Todas essas questões geram um grande impacto no psicológico dos adolescentes e são fatores determinantes para as altas taxas de suicídio entre jovens no país. 

A incorporação da fórmula da história de fantasmas não é exclusiva do cinema de terror coreano. No entanto, a série Whispering Corridors codifica com sucesso as experiências horríveis e traumáticas do ensino médio específicas para estudantes coreanos, adotando seletivamente os ícones e convenções do gênero horror (Black, 50, 2003)[4]

Em resumo, a maioria dos plots fílmicos desse período exploram esse horror que mora dentro das questões educacionais e da transição para a vida adulta.


   2000 – 2010

                                                              I Saw the Devil (2010)

 

Assim como em cinemas de horror de outros países, em um primeiro momento, o terror sul-coreano se consolida como um instrumento de manutenção da moral e dos bons costumes. Com a retomada das produções na década de 90, ele também se transforma em uma ferramenta de crítica social. Isso fica visível com o remake de The Housemaid (2010). Se o original abordava a questão do terror doméstico, onde uma mulher era penalizada de alguma maneira por não se dedicar ao lar, a nova produção questiona o capitalismo e o modo de vida da população mais rica da Coreia do Sul. E esse tema se torna recorrente em produções fílmicas e televisivas, como Parasita (2019) e Squid Game (2021). Esse viés crítico das produções passa a acontecer tardiamente em relação a outros cinemas justamente porque a sociedade sul-coreana ainda é muito conservadora. 

A Tale of Two Sisters (2003)


Talvez o filme mais importante dessa década seja A Tale of Two Sisters (2003). Além de contar uma das histórias mais populares do folclore coreano (que já foi adaptada para o cinema várias vezes), ele traz um frescor estético para as produções do gênero. Por muito tempo, os produtos sul-coreanos de horror eram sinônimo de filmes de baixo orçamento. Mas o jogo muda completamente com essa produção.

Coproduzido por Oh Ki-min e a produtora B. O. M., A Tale of Two Sisters substituiu a estética crua do cinema de terror de baixo orçamento por uma controlada e meticulosa mise-en-scène. O filme foi bem recebido pelo público coreano e quebrou o recorde de bilheteria de todos os tempos do cinema de terror coreano com 3 milhões de entradas. (Choi, p. 42, 2009)[5]

Além do desenvolvimento de mais longas sobre terror teen, a partir da década de 2000, com a explosão do splatter ao redor do mundo, que são longa-metragens muito violentos, repletos de gore, a Coreia do Sul diversifica as narrativas de longas de horror e passa a experimentar uma onda de películas mais gráficas, como Oldboy (2002), I Saw the Devil (2010), entre outras. São filmes que refletem de alguma maneira todo o impacto que a crise econômica que varreu a Ásia na década de 90 trouxe para a Coreia do Sul. A maioria das películas possuem uma aura de extremo pessimismo e brutalidade, além de apresentar uma dualidade desconcertante e reviravoltas que impactam a audiência. Se antes os filmes faziam a manutenção da moralidade, nessa nova era do cinema sul-coreano, a moral é totalmente invertida. Tópicos extremamente chocantes são abordados, como violência contra mulheres, incesto, entre outros assuntos controversos. Além disso, como o acesso à armas é bastante limitado no país, os diretores, ao criar suas narrativas, costumam ser bastante inventivos ao explorar atos violentos. 

Nessa época, também começam a aparecer no cinema sul-coreano, possivelmente pela influência do cinema de horror japonês e pelo folclore, figuras fantasmagóricas com cabelos compridos. O estopim dessas aparições é a franquia Whisper Corridors e elas continuam se fazendo presentes na década de 2000, em longas como Phone (2002). Vale a pena salientar que essas personagens não são exatamente uma novidade. Elas já protagonizavam filmes de horror sul-coreanos desde os anos 60. A partir da modernidade, porém, esses espíritos vingativos possuem uma mudança comportamental significativa. Apesar da maioria dos espíritos sejam de fato fantasmas per se, que buscam vingança, alguns deles são desconstruídos:
 

Art Black argumenta que uma das características distintivas do atual ciclo de horror coreano é o retrato de fantasmas como 'criaturas perdidas, tristes, invisíveis, esquecidas, em busca de amizade, companheirismo, amor do que vingança. Exemplificado em filmes como A Tale of Two Sisters (Janghwa, Hongryeon, Kim Ji-woon, 2003) e Memento Mori (Yeogo gwedam2, Kim Tae-yong e Min Kyu-dong, 1999), o 'espírito simpático' compartilha a dimensão trágica do wonhon (...), mas é muito menos agressivo. (...) De acordo com a noção de que o horror coreano contemporâneo é trágico em vez de aterrorizante, Jinhee Choi argumenta que na maioria desses filmes, o tom emocional não é de medo ou desgosto, mas tristeza, algo particularmente evidente no ciclo de horror das meninas do ensino médio. (Martin, p 148 – 149, 2013). [6]

A mulher também é ressignificada nesse novo momento. Se antes elas eram alvo da polícia moral, alguns filmes começam a questionar a submissão feminina e o modo como a sociedade e o machismo na Coreia do Sul impacta a vida das mulheres. Um exemplo disso é o longa Bedevilled (2010). A película conta a história de uma mulher emocionalmente quebrada, casada com um homem terrível. Moradora de uma ilha, ela sonha em fugir com a filha para ter uma vida melhor. Seguindo a tradição coreana, onde os mais jovens precisam respeitar os mais velhos, a personagem é sufocada pelos desmandos da sogra e pelo casamento fracassado. Por fim, ela explode em um rompante de violência extrema. É um longa extremamente triste, que denuncia a perversidade do sistema patriarcal, mostrando que, apesar de ser um país tão avançado em alguns quesitos, a Coreia do Sul ainda precisa evoluir muito em relação aos direitos das mulheres.

Bedevilled (2010)


Por falar em vingança, o cinema da Coreia do Sul parece ter uma pequena obsessão pelo tema. Mas isso não é abordado nos moldes ocidentais, onde longas rape-revenge são numerosos e colocam a vingança como uma espécie de redenção para as personagens que são, quase sempre, abusadas sexualmente e precisam se transformar em super heroínas para superar seus traumas. Tão pouco lembram os filmes originados pela morte de uma mulher, onde comumente os parceiros das vítimas, homens absolutamente ordinários, se embrenham em uma jornada de vingança redentora, transformando-se em máquinas de matar. É claro que existem na Coreia do Sul filmes cuja força motriz é a morte de uma mulher, mas os desdobramentos são sempre muito criativos e os roteiros mostram a fragilidade masculina. Só que a construção desses longas ocidentais é sempre desenvolvida a partir da premissa de um fato que tira o cotidiano de ordem e isso precisa ser restabelecido.

A violência, por exemplo, no filme de Hollywood geralmente cumpre uma das duas funções: sinaliza a ruptura da ordem — uma violação da lei — que coloca a narrativa em movimento e desencadeia o desejo do espectador por resolução – para o restabelecimento da ordem. Alternativamente, fornece os meios pelos quais a ordem é restaurada e a narrativa é resolvida. Ao longo do caminho, o filme atribui valores morais a diferentes atos de violência, criando um sistema de paralelismos que identifica os agentes por trás da violência como bons ou maus, dependendo sobre se esses atos levam a mais perturbações ou trabalham para a resolução”. (Cagle, p.125, 2009)[7]

Quando pensamos no cinema sul-coreano, tanto nos filmes de horror com fantasmas vingativos, longa-metragens como a trilogia de Park Chan-wook ou I Saw the Devil (2010), a vingança e a violência são tratadas de forma realista. Os personagens que se envolvem nesse processo nem sempre alcançam redenção. É uma imensa bola de neve. Sempre existe alguma consequência nesse processo. Normalmente, a dor que precisa ser aplacada acaba sendo ampliada. Nem sempre uma resolução acontece e os códigos morais são colocados à prova.
No ocidente, também existe uma grande expectativa em relação a performance desse ato vingativo, o qual acontece sempre na última parte das películas. Os filmes sul-coreanos, de alguma maneira, ressignificaram esse ato performático, criando desfechos mais inovadores e surpreendentes, justamente porque não existe esse apego ao que é moralmente aceito.


2010 – 2022


                                                                 Train to Busan (2016)



Pensando nesse viés de melancolia do cinema de horror sul-coreano, precisamos entender que, desde a década de 50, toda a produção audiovisual da Coreia do Sul é muito norteada pelo melodrama. Por essa razão, é comum encontrar longa-metragens que possuem narrativas com altas doses de horror e ação, intercalados por momentos extremamente dramáticos. São quebras de ritmo fílmico muito evidentes. E isso não ocorre somente na Coreia do Sul. O Japão também faz essa mistura em alguns longas, como Battle Royale (2000). Um exemplo muito claro do que estou tentando dizer é o filme Train to Busan (2016). O filme, que foi um sucesso absoluto ao redor do globo, apresenta cenas de ação de tirar o fôlego, interrompidas por momentos cheios de dramaticidade. Ao olhar ocidental, esse tipo de escolha narrativa pode soar um tanto estranha, mas dentro do padrão audiovisual coreano isso é muito comum. Train to Busan também é importante por outra questão. A partir desse longa, os sul-coreanos conseguiram revitalizar o subgênero de zumbis. E eles continuam fazendo a manutenção disso, trazendo sempre mais inovações, como o longa-metragem Península (2020), que é uma continuação de Train To Busan, e a série mais recente da Netflix, All of Us Are Dead (2022). Tanto Train to Busan quanto All of Us Are Dead bebem do estilo de George Romero de fazer crítica social com mortos-vivos. All of Us Are Dead é uma fábula apocalíptica inspirada no naufrágio da balsa Sewol, que matou vários alunos de uma escola. Eles padeceram por causa da demora do resgate e problemas estruturais da embarcação. Na produção do streaming, um grupo de adolescentes é deixado para trás no meio de um apocalipse zumbi. Train to Busan também parece ser inspirado na tragédia de Sewol, além de abordar as práticas neoliberais sul-coreanas.


Train to Busan reafirma tragicamente a existência de elementos deletérios do neoliberalismo que chegam a afetar a vida coreana moderna: gestão de crise fracassada, propagação patogênica de doenças e direitos da classe alta. De um quadro analítico de saúde global, o filme expõe a audiência para elementos desagradáveis de contagio, percebidos globalmente e como esse patógeno pode ser compreendido em termos biosociais, onde o surto zumbi desencadeia um pandemônio na Coreia do Sul - o que eu percebo alegoricamente como a gestão neoliberal fracassada de desastres que têm ligações com crises da vida real pós-FMI na Coreia (...) Surtos e desastres nunca são algo que os governos podem prever, mas eles devem estar preparados para lidar com emergências nacionais; sejam fílmicas ou reais, as respostas são geralmente pobres, especialmente quando consideramos que a “regulamentação frouxa, inspeções de segurança deficientes e uma resposta lenta e mal coordenada” (...) são fatores-chave que levaram ao desastre da balsa Sewol em primeiro lugar. (Wagner, p.516, 2019) [8]

Já é uma tradição sul-coreana abordar as tragédias que ocorrem no país dentro do audiovisual. Por exemplo, o k-drama de horror Black (2017), aborda um desabamento de um shopping de uma cidade sul-coreana. A inspiração vem do acidente ocorrido no centro comercial Sampoong, ocorrido em 1995 em Seul. Até mesmo The Host (2006) é baseado em fatos reais. Um funcionário de uma base estadunidense despejou produtos tóxicos no rio Han. Segundo Peter Y. Paik, a partir desse acontecimento, o cineasta Bong Jo-hoon usa essa figura gigantesca para falar sobre desigualdade social e das altas taxas de suicídio do país. Como as pontes do Han são muito usadas pelas pessoas que querem tirar suas vidas, o cineasta faz uma analogia de que o monstrengo só consegue crescer, pois existe uma abundância de corpos dentro do rio. [9]

Não existe nenhum pudor na abordagem dessas questões traumáticas. E isso talvez choque um pouco a audiência ocidental que costuma não lidar muito bem com esse tipo de evento. E quando isso é abordado, costuma acontecer no âmbito documental, bem afastado do horror.

Voltando a falar de Train to Busan, o longa tem esse traço bem marcante de crítica ao capitalismo devastador da Coreia do Sul. Mas como disse anteriormente, não é a única produção que foca nesse assunto. The Handmaid (2010) e Parasita (2019) abordam claramente as divisões sociais existentes no país. Os ricos, que seriam 1% da população, concentram a maior parte da renda do país, enquanto a grande parte dos cidadãos está afundada em dívidas e vivendo de forma precária. Sem falar, é claro, da questão previdenciária sul-coreana. Muitos idosos vivem à margem da pobreza. O país possui essa dualidade gigantesca. Apesar de parecer ser um país desenvolvido em tantos aspectos, com nuances futuristas, a Coreia do Sul tem dificuldades para oferecer um futuro para a população mais jovem, visto que o mercado de trabalho não consegue absorver novos empregados. É um verdadeiro filme de horror. O problema da falta de emprego entre os jovens sul-coreanos é tão dramática, que as pessoas passaram a chamar o país pelo seguinte apelido: “Hell Coreia”. Os jovens são influenciados para serem melhores em tudo e, quando adentram o mercado de trabalho, as portas estão completamente fechadas. Quem possui mais recursos, prefere sair do país em busca de oportunidades. Quem fica, acaba encontrando dificuldades para sobreviver. É a chamada Geração Sampo: pessoas que desistiram de se casar e ter filhos, pois mal conseguem sobreviver. E isso está impactando significativamente os níveis de natalidade do país. A Coreia do Sul tem hoje a menor taxa de fertilidade do mundo. 

Parasita (2019)


Falando um pouco da questão habitacional, Parasita é um filme que mostra de forma clara o abismo que existe entre o modo de vida nos bairros nobres e a periferia coreana. Muitos sul-coreanos acabam escolhendo morar nos chamados banjiha (반지하), que são apartamentos e quartos localizados nos porões dos prédios. A maior parte dessas moradias fica abaixo do solo. E os problemas em relação a esses cômodos são variados. Quase não existe privacidade. Por causa da umidade constante, esses locais costumam ter uma grande proliferação de mofo. Além disso, os moradores enfrentam uma série de questões quando fortes chuvas acontecem. Existem muitos casos de inundação. A mais recente ocorreu esse ano e vitimou três pessoas que moravam em um desses apartamentos. Inicialmente, os banjiha eram construídos para servir de abrigo para os moradores dos prédios em um possível conflito com a Coreia do Norte. Até 1980, era extremamente proibido alugar esses espaços, mas com a crise econômica, as pessoas começaram a se mudar para esses locais e as autoridades fizeram vista grossa. Com a recente tragédia causada por chuvas torrenciais, o governo sul-coreano decidiu que esse tipo de apartamento não poderá mais ser usados como moradia. O que acontecerá com esses moradores ainda é um enigma.

Ainda no campo econômico, o seriado Round Six (Squid Game), lançado pela Netflix em 2021,  aborda um grupo de pessoas endividadas que são selecionadas para um jogo sangrento. O sobrevivente leva para casa uma bolada de dinheiro. A história possui predecessores, como o longa japonês Battle Royale (2000), mas conseguiu se destacar pela originalidade narrativa, abordando o endividamento dos sul-coreanos, um dos problemas mais sérios do país.

Seong Gi-hun, um dos principais personagens da série, é um exemplo da realidade enfrentada por uma parcela da população sul-coreana. Demitido da montadora em que trabalhava, ele contraiu uma dívida gigantesca após se aventurar em empreendimentos comerciais fracassados e jogos de azar. Sem perspectivas, ele sequer tem dinheiro para comprar um presente de aniversário para a filha ou para bancar o tratamento médico da mãe, que sofre de diabetes. [10]

Fica claro que essa nova safra de filmes e séries de horror da Coreia do Sul dialogam com os problemas internos do país. As narrativas carregam um subtexto muito intenso de crítica social. O que realmente assusta na Coreia do Sul nesse momento é a selvageria do capitalismo. Ela é a fonte de todo o terror moderno.



Livros utilizados nessa pesquisa:

[1]Alison Peirse e James Byrne. Creepy Liver-Eating Fox Ladies: The Thousand Year Old Fox and Korea’s Gumiho. Korean Horror Movie (2013).

[2] Paul Fisher. A Kim Jong-Il Production: The Extraordinary True Story of a Kidnapped Filmmaker, His Star Actress, and a Young Dictator's Rise to Power (2015).

[3] [4] Art BlackComing of age: the South Korean horror filmFear Without Frontiers Horror Cinema Across the Globe (2003).

[5] Jinhee ChoiA Cinema of Girlhood: Sonyeo Sensibility and the Decorative. Impulse in the Korean Horror Cinema. Horror to the Extreme: Changing Bounderies in Asian Cinema (2009).

[6] Daniel Martin. Between the local and the global:‘Asian Horror’ in Ahn Byung-ki’s Phone and Bunshinsaba. Korean Horror Movie (2013).

[7] Robert L Cagle. The Good, the Bad, and the South Korean:Violence, Morality, and the South
Korean Extreme Film
.Korean Horror Movie (2013).

 [8] Keith B. Wagner. Train to Busan (2016): Glocalization, Korean Zombies, and a Man-Made Neoliberal Disaster. Rediscovering Korean Cinema (2019).

[9] Peter Y. Paik. The Host (2006): Life in Excess. Rediscovering Korean Cinema (2019).

Formulário p/ pagina de contato (Não remover)